segunda-feira, 27 de julho de 2009

Ela andava distraída. Coordenar as duas pernas para que a conduzissem na direção certa com o mínimo de decência e equilíbrio lhe custava, não há dúvidas, infinitamente mais do que "os olhos da cara".
Sempre fora considerada uma das melhores. A melhor equilibrista de todo aquele circo complexo em que vivia. Equilibrava o sol, o lobo, a lua e o mar. Equilibrava a fome, a sede, a doçura, a calma e o desespero. Equilibrava os arrepios, os sentimentos, as tragédias e as conquistas. Equilibrava a consciência, o orgulho, a vergonha, a missão, a alma e a coragem.
Era frio. Uma névoa branca e densa envolvia cada centímetro de seu corpo e parecia penetrar seus pulmões em harmonia com o ar gélido que soprava por entre as frestas dos longos e detonados arranhacéus daquela ruela. Nada ali fazia muito sentido mas ela andava distraída demais para notar qualquer falta de coerência. As imponentes construções se encontravam em estado de abandono escancarado e sofriam todos os maus tratos da madrasta maligna e impiedosa: o tempo. O tempo, que aos prédios sobrava, para ela faltava. Algoz de cada um a sua maneira, ela sabia que dele não haveria escapatória. Sabia sim, mas já não pensava.
O sobretudo preto e pesado escondia o corpo nu daquela menina. As nuances arroxeadas de sua pele se assemelhavam com as velhas obras abstratas de aquarela que eu costumava pintar. Quase imperceptíveis graças a fraca luz do único poste acesso naquela escuridão vazia, os traços, as curvas e os hematomas se faziam sentir dolorosamente enquanto ela caminhava. Não havia para onde fugir. Há alguns dias atrás sabia exatamente onde estava mas - em um mundo que de tão mundo parecia a ter esquecido - se perdeu completamente e caiu naquele abismo circular de muros gigantescos, lisos e escorregadios. Seria inútil tentar escalar. Parecia estar sonhando, mas conseguia ver com precisão o relógio digital em seu pulso marcando 00:45.
Como em um parque de diversões podia sentir a roda gigantesca se movendo. Dessa vez era diferente, entretanto. Ela desejava com todas as forças que pudesse sair. Não sabia o sentido de tudo aquilo e não conseguia abrir a boca para pronunciar um som que fosse. Não assumiria a culpa de quebrar o imponente silêncio que se instalara naquela dimensão. Apenas as arfadas doloridas se faziam ouvir; involuntariamente.
A névoa se tornava tão densa e sufocante que ela procurava dentro de si alguma lasca qualquer de força que pudesse ter ficado para trás e caído mais longe dos cacos de alma que ela havia deixado em algum lugar do caminho. A consciência já lhe faltava e ainda assim ela tentava, em vão, raciocinar.
O joelho direito foi o primeiro a tocar o chão, seguido pelo joelho esquerdo e, no milésimo de segundo posterior, pelas coxas, barriga, peitos, braços, mãos, rosto e cabelos. Um pequeno trecho do asfalto áspero esquentou a medida que aquele rastro de sangue deixava o corpo da menina. O vento intenso e cortante laceava os cabelos negros ao seu bel prazer, tornando a inconsciência um fabuloso, desregrado e aterrorizante espetáculo.
O aspiral inconstante e indecifrável de pensamentos e sentimentos se libertava na escuridão banhando de uma fúnebre luz prata a textura do céu noturno. Era uma quantidade crescente de pequenos e patéticos alfinetes prateadissimos dançando livremente ao som daquela madrugada silenciosa. As arfadas de dor e frio eram cada vez mais intensas a medida que a imensa bolha reluzente e mutante se formava ao redor do corpo inconsciente.
Agulhetas continuavam a se desprender e perfurar o interior dos órgãos e, em seguida, a pele pálida em direção ao vazio; ninguém viu por quanto tempo.
A gigante poça carmim derramada no asfalto se assemelhava aos velhos vinhos que degustava com meu pai em noites de inverno. Os contornos fortes e inertes do corpo daquela menina, escondidos pelo pesado pano preto e expostos ao nada se enchiam de vida, liberdade, inconsciência e dor a medida que os alfinetes o perfuravam de dentro para fora e pairavam, levando consigo minúsculas gotículas de sangue morno que sujavam a gigantesca bolha prateadoa que se erguia, pouco a pouco, quase como mágica, desde o chão até encobrir a menina por completo, dançando freneticamente e metalizando a precária visão que o resto do infinito poderia oferecer a qualquer espectador. Mas ninguém viu, ninguém nunca vê.
Ela ali sozinha, com o coração batendo desesperado no ápice inconsciente do sono profundo, rodeada por seus sentimentos e pensamentos prateadamente afiados que aguardam o sinal do primeiro acorde de consciência para perfurar nova e rapidamente aquele corpo que não podem simplesmente deixar pra trás. Ela então levanta, se olha no espelho e procura pelas feridas que trás na alma. Ela passa o dia equilibrando alfinetes afiados - presos entre os pólos positivo e negativo de seu corpo - até o cair da madrugada. Ela sente sono e pouco a pouco volta a andar dolorosamente pelo vazio até adormecer.
Girando na roda gigantesca sem saber como parar. Ninguém vê, mas acontece todas as noites.

P.S. O perispirito também é um corpo, certo?

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