quarta-feira, 7 de outubro de 2009

"Ao introduzir a chave na porta do apartamento, percebi que a fechadura havia sido forçada. Fiquei paralisada. O trinco começou a girar do lado de dentro. A porta se abriu e me deparei com o olhar escuro que já conhecia de tempos atrás. Que Deus me perdoe, mas naquele instante senti que recobrava a vida e dei graças aos céus.
Nos fundimos em um abraço interminável, mas, quando procurei seus lábios, ele se afastou e baixou os olhos. Fechei a porta e, segurando em sua mão, guiei-o ao quarto. Deitamo-nos na cama, abraçados em silencio. Entardecia, e as sombras do apartamento ardiam, cor de púrpura. Ele chorava em meu peito e eu me senti invadir por um cansaço impossível de traduzir em palavras. Mais tarde, quando caiu a noite, nossos lábios se encontraram, e sob a proteção daquela obscuridade urgente nos desprendemos daquelas roupas que cheiravam a medo e morte. Quis me lembrar do homem ao qual eu pertencia, mas o fogo daquelas mãos em meu ventre roubou-me a vergonha e a dor. Quis perder-me nelas e não voltar, mesmo sabendo que ao amanhecer, exaustos e talvez doentes de desprezo, não poderíamos nos olhar nos olhos sem nos perguntar em que havíamos nos transformado.

Fui despertada pelo barulho da chuva ao alvorecer. A cama vazia, o quarto coberto por uma névoa acinzentada. Encontrei-o sentado em uma poltrona, contemplando os restos de vida perdidos nas sombras de uma Barcelona caótica. Ele levantou os olhos e brindou-me com aquele sorriso morno, distante, que dizia que ele nunca seria meu. Tive vontade de cuspir-lhe a verdade, de feri-lo. Teria sido tão fácil revelar-lhe que ele vivia de enganos, que eu agora era tudo que ele tinha no mundo.
- Eu nunca deveria ter voltado a Barcelona.
Ajoelhei-me a seu lado.
- O que você procura não está aqui. Vamos embora. Os dois. Para longe daqui enquanto há tempo.
Ele me olhou longamente, sem piscar.
- Você sabe alguma coisa e não me disse, não é?
Neguei com a cabeça, engolindo em seco, e ele se limitou a assentir.
- Essa noite eu voltarei lá.
- Não, por favor..
- Preciso ter certeza.
- Então eu vou com você.
- Não.
- Da última vez que fiquei aqui, perdi o que me restava. Se você vai, eu vou.
- Isso não tem nada a ver com você. É algo que só diz respeito a mim.
Perguntei-me se ele realmente não percebia o mal que suas palavras me faziam, ou se ele nem se importava com isso.
- Isso é o que você pensa.
Ele quis acariciar meu rosto, mas afastei sua mão.
- Você deveria me odiar. Isso lhe traria sorte.
- Eu sei."

A Sombra do Vento - Carlos Ruiz Zafón
Um dos melhores livros que eu já li na vida.

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