Porto Alegre, 21 de março de 1972.
"Verinha querida; escrevi para você e Henrique há muito tempo, em
dezembro. Não recebi nenhuma resposta, fiquei grilado com o silêncio, achando
que vocês não me queriam mais ou, na melhor das hipóteses que o correio havia
extraviado a minha carta. De qualquer jeito, era uma carta muito besta, falsa e
descolorida — eu estava atravessando uma fase muito ruim, me sentia exilado aqui
em Porto Alegre, vazio, sem nada pra dizer, a não ser que gostava imensamente de
vocês dois e não queria perdê-los. Talvez fosse um pedido de socorro
envergonhado. O socorro não veio, nem de vocês nem de ninguém, e fui obrigado
a me investigar e afundar em mim mesmo durante todo esse tempo, no começo
assim como quem cava um poço no deserto, depois, aos poucos, sentindo a areia
mais úmida, uns filetes d’água brotando lentamente, até agora, quando me sinto na
iminência de mergulhar o corpo nesse lago (talvez mar)-eu-os outros-cosmos, não
sei.
Eu ia te escrever qualquer dia, eu tinha — e tenho — um monte de coisas
pra te dizer, aquelas coisas que a gente cala quando está perto porque acha que as
vibrações do corpo bastam, ou por medo, não sei. Mas as coisas todas, externointerno,
eram muito difíceis e escuras, eu não tinha condições de mostrar ou dar
nada a ninguém que não fosse também escuro, compreende? Eu não queria, eu não
quero dar trevas, dor, medo, solidão — eu quero dar e ser luz, calor, amparo
(naquela cerimônia do chá em Sta. Teresa eu disse que queria ser ombro, você
disse que queria ser um ovo — será que um ovo pode se apoiar num ombro sem
quebrar?). A noite passada sonhei com você, e acordei hoje todo cheio de Verinha, você sentada comigo na frente do Conservatório, você na praia, você de
branco, você sorrindo e apertando os olhos, você de tantos jeitos que eu não tinha
outra solução senão sentar e escrever, embora com medo de não poder, de não
saber, quando a gente segura um vidro a gente tem medo de quebrá-lo. Sobre o
sonho não falo, talvez você achasse ridículo, mas era bonito.
Passei coisas difíceis. Fui demitido da Bloch e estive preso por porte de
drogas. Depois disso, voltei para cá e, durante algum tempo, mergulhei numa série
de viagens lisérgicas, de onde saí mais confuso do que nunca. Perdi minha
identidade, me desconheci. Passei um mês inteiro trancado no quarto, sentindo dor.
Não exatamente sentindo, mas sendo dor, sem falar com ninguém, sem pensar
nada, sem fazer nada. Passei janeiro na praia, com meus pais e meus irmãos, e em
fevereiro fomos pra Itaqui, uma cidadezinha na fronteira com a Argentinas onde
moram meus avós e tios. Acho que foi um pouco o ter voltado a encontrar a
paisagem da minha infância que me fez reencontrar também comigo mesmo, voltar
a abrir os olhos e não fugir mais. Toda aquela terra, as cadeiras na calçada e as
pessoas olhando o céu, sabendo da natureza, as ruazinhas estreitas, as casas velhas,
a ausência de televisão, de automóveis, de civilização — tudo isso faz parte do mais
fundo de mim, onde comecei, onde estou plantado. A vontade compulsiva de me
atordoar cedeu lugar à vontade de ser simples, ser terra (como Jorge de Lima:
“Nunca fui senão uma coisa híbrida/ metade céu, metade terra com a luz de Mira-
Celi dentro dos olhos”) e quando voltamos para Porto Alegre, eu já estava em
pleno processo de regeneração.
Estou fazendo análise, ontem tive a primeira sessão. Não é análise
tradicional: o paciente esticado no divã e o analista remexendo a cuca com seu
bisturi-freudiano-kleiniano-enferrujado. O método de um alemão Schultz (o papa
germânico da psicanálise), fundamentado na auto-hipnose, concentração,
relaxamento, meditação, auto-análise — baseado nas filosofias orientais, ioga, zenbudismo,
tao. O paciente aprende a dominar seu corpo e sua mente e, no último
estágio, alcança uma grande paz ou conhecimento (espécie de nirvana ou satori),
encontra dentro de si reservas de criatividade e pode orientar-se para qualquer
objetivo, auto-estimulando-se. Os exercícios de concentração, como a ioga, podem
levar a ter visões de cores, paisagens paradisíacas, essas coisas. E tudo isso acaba
com a ansiedade, a angústia, a insegurança. Vai ser bom e vou conseguir.
Depois das viagens, estive quase paranóico. Vi monstros horrendos nas
pessoas, me senti perseguido e encurralado, aí me tranquei em casa e, cada vez que
saía, era um suplício — voltavam as ondas do sunshine e eu achava que as pessoas
iam me morder, rir de mim, um inferno. Quando melhorei um pouco, tentei sair e
procurar alguns amigos, mas não consegui nenhuma integração com eles. Fiquei
surpreendido com o grau de vampirização das pessoas: todas elas preocupadíssimas
em falar, falar, falar, extrair opiniões, orientações, dicas, dizer coisas inteligentinhas,
mostrarem que não são caretas, que não têm medo, que não sentem dor. Cada
contato meu com alguma pessoa representava uma perda enorme de energia vital:
eu saía esgotado, confuso, com dor de cabeça e, principalmente, com dor por não
poder fazer nada pelo desespero alheio. A minha própria miséria aumentava. Foi aí
que a solidão deixou de ser involuntária para se transformar em escolha. E foi bom,
está sendo bom. Passo o dia lendo, ouvindo música, vendo velhos filmes na
televisão, de vez em quando vou ao cinema ou saio para passear na beira do rio que
passa atrás do edifício. Fico lá sentado numa pedra, fumando e pensando nas
pessoas que perdi, senão em afeto, pelo menos em proximidade física. De vez em
quando choro, é bom chorar, eu não tenho vergonha, mas em todos os momentos
existe a certeza de ter feito uma escolha acertada, de estar caminhando em direção à
luz. Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu
não poderia ter agido de outra maneira — mesmo em relação a você — levando
em conta o quanto eu estava confuso naquela época. Também já não tenho aquelas
queixas infantis, na base do “tudo dá errado pra mim”, ou autopunições como “eu
sou uma besta, faço tudo errado”. Nada é errado, quando o erro faz parte de uma
procura ou de um processo de conhecimento. Gosto de olhar as pedras e os
desenhos do vento na superficie da água, gosto de sentir as modificações da luz
quando o sol está desaparecendo do outro lado do rio, gosto de sentir o dia se
transformando em noite e em dia outra vez, gosto de olhar as crianças brincando
no corredor de entrada e das palmeiras que existem no meio da minha rua — gosto
de pensar que vou sempre ter olhos para gostar dessas coisas, e por mais sozinho
ou triste que eu esteja vou ter sempre esse olhar sobre as coisas. Não sei muito,
também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a
respirar o ar das montanhas.
Verinha, eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas
acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas confusas não saibam amar.
Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha
do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que
então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há
uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para
compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas
difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas — se um
dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será
preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só
queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra
você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você
existe em mim."
Caio Fernando Abreu
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