Era fim de tarde e ela me puxava
pela mão. Chovera na hora anterior. Por agora, só se via os raios claros e
pálidos atravessando pequenas frestas entre o denso manto que recobria o céu e
iluminando os resquícios de chuva que presenteavam o chão com um tom espelhado
e escorregadio.
Ainda que não soubesse para onde
ela me levava - e tivesse a vã certeza de podê-la fazer parar instantaneamente com um simples movimento - permiti que me conduzisse livremente, atentando
apenas ao ritmo um tanto descoordenado de seus passos e aos movimentos
cadenciosos de seu quadril.
Seguindo rumo ao desconhecido,
fechei os olhos e sorri discretamente: não ousaria interromper a magia
divertida do momento. Lembrei do êxtase hipnotizante que me causara o primeiro
contato entre a textura exageradamente macia daquelas mãos e superfície das
minhas. Custava a crer que aqueles dedos longos e finos realmente haviam sido esculpidos
com uma suavidade tal que quase inexistia e que os tornavam capazes de sumir
facilmente por entre a indelicadeza exacerbada de meus traços e rótulas.
Escorreguei levemente e senti a
água gelada agredir a temperatura morna de meus pés. Malditos tênis de pano,
pensei. Ela, que diminuíra levemente o passo, agora sorria diante da minha
inevitável falta de jeito. Sorria como quem carrega o brilho do mais poderoso
raio de sol no recanto mais profundo de seu ser. Observei o quanto me era
fácil fazê-la sorrir.
Seu rosto pouco a pouco se volta novamente ao
horizonte ao passo que me revelava aquelas melenas agora longas e exageradamente negras. Meu
olfato, que nunca chegara perto de alguma classificação excepcional, sentia claramente
o perfume de sua nuca misturado a fragrância dos cabelos que agora lhe caiam
rebeldes pelas costas. Aquele odor em específico me tirava o chão, enuveando instantaneamente qualquer um dentre todos os sentidos possíveis.
Forcei cada um de meus músculos,
obrigando-me a ficar de pé. Não suportaria mais um de seus sorrisos, assim, tão de repente. Achava graça do modo como, mesmo após tanto tempo, ainda me
admirava o poder soberano de sua presença. Aliás, já havia perdido a conta de
há quanto tempo estávamos em movimento. O crepúsculo invadia a tonalidade de tudo o que nos rodeava e duplicava o céu em reflexos formados na superfície dos espelhos
d´água espalhados pelo chão.
Percebi minha imprudência de
pronto. Como permitira que ela nos conduzisse assim tão livremente sem me atentar ao caminho? Justo ela que
não seria capaz de reconhecer nem as redondezas da própria casa? Ri. Perder-me junto a ela
não seria assim tão má ideia, afinal.
Quão logo me contentei em
estar perdido, senti uma leve pressão vindo de soslaio por entre meus dedos. Chegamos!
– ouvi. Estávamos em frente à um arranhacéu. Ensaiei breves palavras de
indagação que se embaralharam frente ao brilho daquele sorriso - agora
iluminado apenas pelas luzes pálidas e artificiais dos postes - e que nunca chegaram a ser balbuciadas. Sua pele parecia ainda mais pálida em noites de
inverno.
Ela me puxara novamente enquanto cumprimentava o porteiro pelo nome.
Ele, por sua vez, não tardou a retribuir com igual gentileza e uma expressão já
deveras familiar. Não havia naquela cidade nem um ser humano indiferente a atmosfera contagiante que ela trazia junto a cada uma de suas moléculas.
O elevador nos conduziu ao sexagésimo terceiro
andar. Ela, que se escorava contra uma das paredes metálicas, arfava longamente
e sorria resplandecente. Pensei em beijar-lhe a boca, mas não ousaria
interromper aquela que poderia ser uma das mais belas imagens mentais já
construídas em definitivo no universo.
Um leve tremor e as portas se abriram em perfeita sintonia.
Senti a delicadeza de suas mãos tocarem levemente meus olhos, me privando temporariamente da
visão. Pé ante pé, fui guiado pela
melodia doce que se fazia ouvir, materializando por entre os sopros proferidos em suas cordas vocais.
Já no parapeito, sentia o vento gelado açoitando
a carne desnuda do rosto, interrompido apenas pelo calor exagerado emanado por suas mãos. O vulto, que conseguira identificar com certo esforço, me fazia pressentir que,
quão logo eu voltasse a enxergar, lá estaria ela em minha frente.
Pisquei quão logo pude ver novamente. Estávamos no heliporto do prédio.
Suponho que aquele era o momento em que eu deveria, impreterivelmente, me
atentar a paisagem. De lá, percebi depois, podia-se ver um punhado generoso de pequenas
esferas tremeluzentes. Estrelas que se misturavam a uma imensidão civilizada que luzia
a perder de vista, desafiando a escuridão.
Ela, absorta entre pensamentos e
encantamentos, perguntou distraída:
- Essa não é a coisa mais linda
que você já viu na vida?
Eu, ainda impossibilitado de desviar a
atenção do fascínio que resplandecia em seu rosto quase angelical
e parcialmente escondido pelos fios de cabelos que lhe açoitavam quando em vez, respondi:
- Com certeza essa é a coisa mais
linda que eu já vi em toda a minha vida.
Ela, estranhando meu tom de voz, fitou meus olhos percebendo, finalmente, que eles apontavam fixamente em sua direção. Sorriu timidamente. Aconchegou-se em meus braços
e estremeu de leve. Somente enquanto sua cabeça pressionava meu
peito, revelando material e inegavelmente a sua presença, é que lembrei de observar a beleza indescritível da surpresa.